A herança escravocrata que assassinou o homem negro e feriu o abolicionista 

​ ​ ​ ​ ​ ​ ​        Manoel L. Bezerra Rocha  

As imagens retratam uma pobre presa, frágil, indefesa, lutando pela sobrevivência, a própria e a de sua prole, inclusive por sua cria, ainda no ventre materno, prestes a nascer. Era véspera da humilde efeméride na qual se revelariam o sexo do nascituro. Em sua volta, em movimentos circulares, lobos, víboras, leões, hienas, todos ávidos, numa sanha irascível e selvagem, avançavam para tirar-lhe aquilo que seria convertido em recursos mínimos à obtenção de alimentos, em um ímpeto onde se mesclavam ódio e pulsão de morte, simplesmente pelo afã de aniquilação daquele que, para os algozes, não passava de um exemplar de “excedente social”, negro, imigrante, pobre, trabalhador informal.  A narrativa bem poderia tratar-se de só mais um comportamento em um ambiente selvagem, em alguma savana da África, onde animais irracionais travam cotidiana luta pela sobrevivência. Todavia, trata-se de uma cena urbana, onde a vítima era a única a lutar pela sua sobrevivência e a de sua família –não agredindo, mas tentando desvencilhar-se do bando de agressores. Os selvagens iníquos não agrediam ou matava para se alimentarem, mas, tão somente, pelo sadismo, pelo desprezo ao outro, movidos por sentimentos de soberba e superioridade étnica e social. O jovem imigrante senegalês, Ngagne Mbaye, era um ambulante que trabalhava há mais de oito anos pelas ruas da cidade de São Paulo. Ele foi covardemente assassinado por agentes da polícia militar por ter tentado fugir para evitar a apreensão de suas mercadorias - após ter sido agredido com golpes de cassetetes e socos por um grupo de policiais -, deixando uma esposa com sete meses de gravidez. Os policiais que o agrediam não o faziam para se protegerem de alguma injusta agressão, mas, simplesmente, para tomarem suas mercadorias. Em nota, a polícia militar declarou que a vítima teria agredido os policiais com uma barra de ferro. Entretanto, as imagens divulgas pelas televisões e pelas redes sociais desmentem essa versão ao mostrarem apenas a vítima tentando se desvencilhar de seus agressores.  Ngange Mbaye foi alvejado com um tiro à queima roupa enquanto estava em movimento evasivo, correndo de costas, tentando salvar suas mercadorias. Nunca, em nenhum momento, esboçou alguma ameaça à integridade física ou à vida dos policiais. Ao contrário, a vítima era severamente fustigada com socos, chutes e golpes de cassetetes.   

​Estavam os policiais agindo em estrito cumprimento do dever legal?  

Absolutamente, não. A policial que efetuou o disparo fatal sequer estava desempenhando regularmente a atividade policial. Ela estava de folga, prestando serviço de segurança particular, privada, aos proprietários de comércios, utilizando-se do fardamento, insígnias e armamento do Estado. Agiu, portanto, como mera capanga a serviço dos interesses daqueles que têm os vendedores ambulantes como inimigos, ainda que muitos sejam empresários sonegadores, criminosos que exploram atividades mal remuneradas, jornadas exaustivas e tráfico de pessoas para exploração de trabalho análogo à escravidão. É amplamente difundido pela mídia que o comércio na região central de São Paulo é controlado pelo crime organizado, inclusive máfias oriundas de outros países.  

A decisão de acionar o gatilho foi precedida de uma séria de cálculos, ainda que processados em milésimos de segundos, mas fundado em conceitos depreciativos preconcebidos: o “valor social” da vítima, o apoio institucional para os reiterados casos de abuso de poder praticados por seus integrantes, o desdém da sociedade para com as vítimas consideradas “irrelevantes” ou “indesejáveis”, notadamente se for pobre e preto. A vítima, portando, apresentava todos os estereótipos que, na mentalidade da assassina, “autorizavam” qualquer decisão, inclusive o seu extermínio sumário: homem negro, vendedor ambulante, pobre, imigrante. 

Ainda que pudesse se tratar de mais uma eliminação sistemática, de uma violência institucionalizada e socialmente indiferente, não raramente aplaudida pela própria sociedade, não há como não observar um detalhe muito eloquente: o assassinato covarde de um jovem negro, imigrante africano, ocorreu em plena rua cujo nome é Joaquim Nabuco. Notório abolicionista, intelectual e diplomata brasileiro, Joaquim Nabuco, dentre tantas obras publicadas, talvez a mais notória seja “O Abolicionista”, de 1883. No prefácio da obra, Nabuco adverte que “a pátria, como mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não existe para os mais dignos”. 

O assassinato covarde do jovem trabalhador Ngange Mbaye, é uma mancha indelével na imagem de Brasil como nação pretensamente civilizada, uma desonra à luta e aos ideais do abolicionista Joaquim Nabuco e uma vergonha imensurável para todos os brasileiros minimamente decentes. 

        Manoel L. Bezerra Rocha é advogado criminalista e colunista da Folha Metropolitana.  

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segunda-feira, 12 maio 2025

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