OS POVOS ORIGINÁRIOS E AS MEMÓRIAS DOLOROSAS – DIA 19 DE ABRIL

        A sinfonia, os cantos e o reverberar dos sons da floresta, de nações em simbiose com a Grande-Mãe, eviscerando o calváriode uma trajetória histórica de resistência, sufocada e negada, vertida em cascatas de sangue e o vilipêndio de corpos indígenas. Sob os auspícios do progresso estatal e do capital europeu, perpetrado pela catequese, na construção da “Arquitetura da Destruição” do deletério metropolitano insaciável, imposto como mundo civilizado branco e cristão, a serviço um projeto catastrófico. O fomento oficial pautado no negacionismo e naamnésia coletiva, latente, constrangedora, sob a cortina de fumaça das queimadas, de narrativas históricas dos algozes, dos mercenários invasores e sob o velacho de religiosos.

        A efeméride do Dia 19 de abril, não pode ser circunscrito, exprimido em lampejos de memórias, em datas comemorativas, festivas que não traduzem e não representam absolutamente o que deveriam ser. Parece mais um movimento de piedade histórica, um aceno em demonstração do reconhecimento outalvez, uma compensação moral, do devido valor cultural e histórico negado aos povos indígenas das Américas, subjugados pela arrogância, a prepotência e a soberba europeia. “Dia do Índio”, que se tornou em eventos circenses — isso não é homenagem, reflexão ou demonstração de respeito —, grotescos, que insistem em constranger os povos indígenas, os povos originários, macular sua cultura, sua história e sua trajetória de luta e resistência. Manchar a memória desses povos, ignorar suas tradições milenares, em eventos caricatos, fantasiando crianças, pintando o rosto, usando adereços e trajes, como se ser indígena, fosse sinônimo de fantasia, chacota, seres exóticos, etc. O que muita gente, ainda insiste em chamar de “Homenagem ao Dia do Índio”, por ignorância ou por má-fé. A data deveria consistir em se buscar compreender, através do conhecimento, de leituras, de estudos históricos, antropológicos, empíricos, as interfaces, as articulações das disputas de poder, que exterminam esses povos em todas as Américas.  

         O etnocentrismo perpetrado pelo estrangeirismo tão em voga atualmente no país, com a síndrome de “vira-lata”, que disseminou o etnocídio dos povos originários, legado imerso nos massacres obrados por invasores — celebrados como conquistadores, heróis —, por garimpeiros, por latifundiários, sob o manto do Estado omisso e incompetente, de quem deveria por ofício, protegê-los. Os ruidosos aplausos de parte de uma sociedade moralmente duvidosa, ignorante, miserável e equivocada, com a empáfia dos covardes e inimigos da nação,blindados por um discurso de intolerância, racista e religioso,vociferando ódio a esses povos, o extermínio sistemático, desdeos primórdios, em que o proselitismo dogmático da catequese, pregou o amor, a igualdade com o livro sagrado na mão, e exercia o poder e a injustiça, com a espada na outra.

         A compreensão da relevância da preservação do patrimôniocultural, como fruto das necessidades e das ações sociais, suas práticas, que permanecem como respeito, aprendizagem e o combate a amnésia estatal, dos grupos economicamentedominantes, as injustiças e a violência, que historicamente, maculam nossa memória, nas narrativas governamentais, a serviço do capital, precisam ficar claras.

        Os povos indígenas, as minorias vítimas da indigência social, do abandono estatal, da invisibilidade estrutural e os massacres recorrentes, genocídio, etnocídio, na perspectiva do abandono, do negacionismo histórico e de direitos. Paralelamente, “o uso ardiloso do patrimônio para a postergação da emissão de posse e propriedade de terras de quilombolas e indígenas” (CAMPOS, 2019, p. 31). 

        É latente, o enredo quase mítico, contudo, covarde, que a construção da narrativa unilateral, revela a face mais cruel de um massacre real, sob os auspícios da benevolência da salvação, dobranco cristão e seu paraíso, triunfantes sobre o inferno de corpos insepultos dos povos originários. Uma compreensão dacolonização nas Américas, agora, pelos olhos que foram cerrados, pelas vozes que foram silenciadas e pelos povos que foram cerceados de sua verdadeira história, de suas memórias, assassinados em suas terras e parindo uma legião de famintos nas searas da terra da prosperidade, reluzentes pelo mercúrio em garimpos ilegais. Cinco séculos após a invasão europeia, tardiamente, começa de forma lenta e discreta, a sair do papel, as garantias usurpadas dos legítimos filhos e donos da terra. Uma realidade expressa na retórica indígena de Krenak — no contexto das discussões na Assembleia Nacional Constituinte (1987 – 1988), nos debates do artigo 216 sobre o conceito de patrimônio cultural no Brasil.

         A cultura, a luta, as tradições dos povos das florestas, originários, são instrumentos de resistência e sintonia com suas raízes, seus ancestrais, cultivados em seus festejos e rituais. Enfrentando o preconceito étnico, a intolerância religiosa, os estigmas de um povo reduzidos por europeus e muitos patriotas brasileiros, como “caricatos, exóticos e preguiçosos”. Explícito no extermínio sistemático de indígenas ao longo da história do Brasil, como por exemplo, o “Massacre do Paralelo 11” em 1963, quando 3.500 indígenas da etnia Cinta Larga, foram assassinados, os Yanomamis e a inanição, os Pataxós e os “Galdinos” queimados vivos, pelos filhos da elite branca, etc. Parte de toda essa tragédia, fomentada pela colonização portuguesa cristã impostapelos europeus, o eurocentrismo, suas influências, seus impactos culturais e religiosos no Brasil, remontam e resultam de todo esse sanguinário processo histórico iniciado a partir do século XVI. Novos elementos que se compuseram e interpuseram as tradições de povos autóctones americanos, indígenas e africanos, constituindo uma diversidade étnica e multicultural. Abrindocaminhos e um precedente para a dominação política portuguesae a imposição religiosa da Coroa, acompanhada de aculturação e a submissão dos povos originários, das mais diversas etnias, espalhadas por todo território americano.

        É preciso ações sérias e imediatas, que assegure a sobrevivência das tradições e crenças indígenas, a pajelança, o catimbó, suas danças, seus rituais sagrados, mantidas e assimiladas em outras manifestações culturais. No Brasil, as referidas características — diversidade étnica, interculturalidade, pluralidade de culto —, constituíram as tradições populares, a dinâmica entre os sujeitos e as diversas crenças. Os autóctones, outros, oriundos de terras distantes, juntos, resultaram em práticas religiosas simples ou complexas, independentes, fundidas, sincréticas, etc. Lopes (2008), afirma que o sincretismo, em religião, é a fusão, ao acaso, de elementos diferentes e incompatíveis em suas origens e fundamentos. Suas nuances e as conexões estabelecidas, premissas que possibilitam transparência nessas fusões, fundamentos e singularidades.

         Portanto, façamos desse 19 de abril, um dia a mais, para refletirmos sobre o que se entende por povos originários, quem são esses 897 mil legítimos indígenas brasileiros de 305 povos eque muitos patriotas de festim, desconhecem, ignoram, atacam e negam! Que a sociedade brasileira, reflita sobre a Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que alterou a Lei no 9.394/1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. E que nesse 19 de abril, lembremos de alguns estudos, que apontam parte das redes de ensino no Brasil, não há aulas sobre esse assunto. O que evidencia, revela o explicito desrespeito, o abandono estatal e civil, a ignorância e omissão dos órgãos (in)competentes. Resta-nos avaliar se é apenas negligência, projeto de Estado, incompetência ou cumplicidade. Dia 19 de abril, não há o que comemorar. 

          A melhor maneira de lembrar a importância dessa data, a melhor forma de celebrar o respectivo ao dia, é com educação plural, inclusiva, laica, antirracista, fazer da escola um espaço de voz, de transformação, com justiça, igualdade, equidade, diversidade e tolerância. Caminhos possíveis para a construção de uma sociedade mais justa e mais culta, em que todos os espaços, públicos e privados, reverberem princípios e valores humanizados, que o conhecimento eleve nossas ações na direção do respeitar as origens de cada um, sua cultura, suas tradições, seus direitos constitucionais assegurados e o grande legado dos povos indígenas, sua luta e suas memórias dolorosas. 

Marcos Manoel Ferreira, Professor, Pedagogo, Historiador e Escritor. Doutorando pela UFG (Aluno Especial) em Performances Culturais; Mestre em História – Cultura, Religião e Sociedade; Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana; Pedagogo com Habilitação em História da Educação Brasileira e Historiador. professormarcosmanoelhist@gmail.com

Leia também

Operação ‘Pacto’ garante a segurança pública em Senador Canedo

0
A ação aconteceu entre os dias 09 e 11 de maio e resultou em inúmeras...

As leis dos homens

0
Uma mulher me ligou. Ela tinha o meu telefone, CPF, agência e número de minha...

LEI ÁUREA: 137 ANOS – A ABOLIÇÃO QUE FOMENTOU A INJUSTIÇA E O RACISMO

0
Em uma única linha, a Lei No. 3.353 de 13 de maio de 1888, declarava...

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

quarta-feira, 14 maio 2025

Últimas notícias