O paradoxo entre o racismo estrutural e nossas raízes
O notável historiador grego Heródoto, declarou que: “O Egito é uma dádiva do Nilo”. Nessa perspectiva, numa imersão históricanessas águas férteis e abundantes do mais extenso rio do mundo — 6.853 km — e margeado por uma rica biodiversidade, grandes plantações de arroz, de trigo, de bananas, de palmeiras, de papiro, de ébano, entre outras culturas. Revelando-nos obras-primas arquitetônicas e esculturas, faraônicas construções, reinos e povospoderosos ao longo de todo seu caminho. A África evidenciou-se não apenas como o “berço da humanidade” e os primórdios da Teoria Evolucionista, bem como, um continente abundante, civilizações monumentais e cultura de legado marcante, para além da triangulação atlântica, que tragou ao tempo, às intempéries da natureza e a rudeza de lutas infindas, contra invasores implacáveis e insaciáveis.
Terra ardente e resistente como seu povo, que se fez em meio a desertos e oásis, savanas e florestas, mares e rios, sob a resistência e a égide de guerreiros iorubás e filhos de Ogum. Ergueram impérios poderosos, desenvolveram culturas e tradições milenares, inúmeras línguas e dialetos, revelando uma diversidade cultural e geográfica singular. Flora e fauna exuberantes, que resistiram as escaldantessecas e as tempestades indomáveis, alicerçando um continentedesconhecido por muitos, em narrativas equivocadas, eurocêntricas, de um mundo “místico, lendário e selvagem” — ignorância histórica — e por outros, admirada e usurpada.
Uma África multíplice em diversidades, como o “ecossistema do Serengeti e sua migração anual de gnus, zebras e gazelas, além do imponente e majestoso monte Kilimanjaro, ambos na África Oriental; o Delta do Okavango em Botswana, o maior delta interno do mundo”. Na África Austral, entre miragens e areias tórridas, o Kalahari, o segundo maior deserto africano e o Saara, o maior do continente e o mais abrasador do mundo; estendendo-se por mais de dez países e compondo a subdivisão natural da África.
Desde o despertar das primeiras civilizações no continente, os egípcios estabeleceram contatos com outros grandes povos e culturas, como os gregos, os romanos, os macedônios, os persas e tantos outros, impressionando a todos pela grandiosidade de seus monumentos, sua magnífica arquitetura, a medicina oftalmológica, os avanços naquímica e o processo de mumificação. Desertos repletos de palácios, templos e pirâmides, a “África Branca” ou do Norte, mais tarde, entrará em contato os árabes e a religião Islâmica, bem como, os cristãos coptas.
Ao sul do Saara, conhecida como “África Negra” ou Subsaariana, destacaram-se os Bantos e formações culturais próprias. Deslocando-se do oriente em direção ao sul da África, atualmente nas regiões da Nigéria e Camarões, atingindo o auge de seu expansionismo entre os séculos VIII ao X. Com características nômades, os Bantos espalharam-se pelo continente e não constituíram um grande império, misturando-se a outros povos e legando muito de sua cultura por toda África. Como, por exemplo, a língua que deu origem a mais de 1000 dialetos e muitos deles ainda falados nos dias atuais.
Sublinhou-se também, a importância histórica e cultural dos povos de Angola, Gana, Mali, o Império Songhai, Congo, Daomé, atual Benin, Togo e todas as suas contribuições dentro de um processo sincrético, latente e dinâmico manifesto na cultura brasileira. Ocorrendo um contato direto, a partir de fins do século XIV, quando europeus e africanos, intensificaram a atividade comercial escravocrata, além das fronteiras da África. Atividade que inclusive, já ocorria no continente, antes mesmo do contato direto com os portugueses e a sanha mercantilista.
A partir do século XIX a busca por novos mercados fornecedores de matéria-prima e consumidores, geraram disputas vorazes, para atender as necessidades do capitalismo industrial e financeiro, intensificando-se a pilhagem, o etnocídio na África e Ásia, fomentando a política imperialista e o discurso infame da “supremacia racial”. Criando abismos históricos, sociais, culturais, étnicos, internos e externos, abrindo feridas “incuráveis” como as germinadas pelas fronteiras artificiais, paridas na irresponsável Conferência de Berlim(1884-1885). Ações que reverberam pelos séculos, a rapinagem e a exploração, reforçando o racismo e a miséria de um continente paradoxalmente, farto.
O Imperialismo foi um processo com consequências catastróficas para Ásia e África, submetidos a ações ardilosas e violentas, apoiados em discursos racialistas desde o século XVIII, a “superioridade racial branca” e a pseudocientífica europeia, sobre os povos africanos e o “darwinismo social”.
A mesma África de grandes vultos históricos, vencedores do Prêmio Nobel, que lutaram incansavelmente contra a violação dos Direitos Humanos e a vergonhosa política do Apartheid na África do Sul (1948-1994). Por exemplo, presenteando o mundo com Nelson Mandela, Desmond Tutu, Winnie Mandela, Zenzile Makeba, Albert Lutuli, Wangari Maathai, Kofi Annan. Entre outras, não premiadas, contudo, não menos ilustres, grandes personalidades de pretos e pretas brasileiras, que dedicaram-se suas vidas ao combate das narrativas silenciadas e a intolerância religiosa, como Zumbi dos Palmares, Dandara, Luís Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Lima Barreto, Carolina de Jesus, Mãe Menininha do Gantois, Elza Soares, Ngozi Okonjo-Iweala, etc.
Gilroy em o “Atlântico Negro”, destaca o grande legado culturalno contexto do processo diaspórico e toda importância étnica africana; a liderança dos grandes guerreiros e o conhecimento dos chefes tribais; os anciãos e seu papel na preservação do patrimônio imateriale das tradições culturais milenares nas comunidades; a força dos laços familiares com a mãe-terra e suas conexões com a natureza. Cultura transmitida oralmente e em todos os lugares; a importância das lendas e a memória na construção da história dos povos da África. O iorubá, as inúmeras línguas e dialetos; as religiões de matrizes africanas e suas variantes nas Américas — Cuba, Haiti —, o poder, a devoção a seus orixás e a ancestralidade, babalorixás, babalaôs e seus rituais, possuem um papel essencial na formação cultural americana.
Ainda se ouve o alarido festivo sob o comando de ogan nilú ao som de atabaques, berimbaus e agogôs, que ecoam de quilombos e quilombolas. Faz-se ouvir a grande alegria — camuflando a dor e a distância —, ritmos e inúmeras cores, misturando-se ao rubro em cascatas pelo corpo. A música das senzalas e mocambos coloca a Casa-Grande para sambar. Os hibridismos cultural e religioso, a capoeira, as danças marcadas, salve, salve o congado e a devoção aos santos padroeiros dos pretos, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e as Congadas!
Escravizados africanos, vítimas do senhorio cristão europeu, trazidos a ferro pelos portugueses para o Brasil, amontoados em navios asfixiantes e em condições ultrajantes. Sob o tilintar dos grilhões, desembarcaram com eles, além da dor do exílio da diáspora africana, a saudade de Oyó. Sua garra, suas raízes, como armas delutas e resistência. Seus elementos identitários, que os açoites do capitão do mato e as senzalas invisíveis, o racismo e a intolerância, não conseguiram silenciar ou apagar.
A construção profusa dessa terra, inúmeras vezes marcada pelo sangue alheio, para saciar a sanha de latifúndios canavieiros, mineradores, cafeeiros, numa supremacia branca, patriarcal e ordinária. O sal gotejado na terra fértil, irrigada pelo suor de bantos esudaneses, fizeram a fortuna e a doçura da cana e da vida de muitos infames senhores. Do açúcar alvo como a neve, que deixava mel o amargo café. Temperado pela vergonhosa escravidão dos renegados e a miséria dos ignorados que tanto contribuíram para a grandeza econômica e cultural do país! Pelas mãos calejadas e pés em brasa, impávidos, cor de ébano, historicamente inferiorizados e marginalizados, pela intolerância caucasiana e racista.
É inegável o quanto somos um país miscigenado — o indígenaamericano, o branco europeu, o preto africano. Uma diversidade cultural e religiosa riquíssima, fruto do sincretismo e do ecletismo cultural-religioso. Legou-nos não só um povo multirracial, bem como, o cristianismo, suas convicções e as perseguições contra as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras. De Xangô deus da justiça, do fogo, tanto quanto Tupã para os Tupis-guaranis. O mesmo Atlântico que rega a Baía de Todos os Santos, igualmente banha a África, seus orixás e os caracóis de todos os cabelos, crespos, lisos ou alisados.
Manifestações culturais como as Congadas, congado ou congo, — influências afro-ibérica — realizada em algumas partes do Brasil, consiste numa celebração, expressão de agradecimento do povo congolês aos seus governantes, inspirada no Cortejo aos Reis Congos. Festividades que revelam uma tradição de encher os olhos, um mergulho cultural e histórico, da vitória da resistência contra a opressão! Cortejos dançantes públicos, tendo o sol como as luzes da ribalta, numa grande e colorida festa popular e que indistintamente, abarca e abraça todos os credos, etnias e níveis sociais, processo esse, nem sempre harmonioso. Numa demonstração clara do quanto às diferenças, nos tornam tão iguais. Das catedrais e sinagogas, as mesquitas e terreiros; de todos os santos aos orixás; do sincretismo religioso ao respeito e a tolerância, ainda em processo de construção.
A importância, as influências históricas e culturais africanas, na construção da identidade do miscigenado povo brasileiro, em uma convivência com tamanha diversidade étnica, religiosa e cultural. Perpassando e presente no nosso vocabulário — angu, banzo, cachaça, cachimbo, cafuné —; na nossa culinária — acarajé, vatapá, feijoada, cocada —; na nossa música e dança — samba, capoeira, lundu, Maracatu, Congada, Cavalhada, Moçambique —; as religiões de matrizes africanas e as afro-brasileiras — Candomblé, Vodu, Umbanda — e uma infinda contribuição, que nos torna tão africanos, quanto indígenas e americanos.
Assim, aspirando ou não, todos temos sangue de africanos.Alguns, nas mãos. Os mesmos insidiosos que seguraram o chicote e hoje, ostentam o racismo estrutural e a intolerância! A insônia dos senhores o surto na casa-grande, “quando a senzala aprende a ler”.
Axé!
Marcos Manoel Ferreira, Professor, Pedagogo, Historiador, Escritor. Pedagogo com Habilitação em História da Educação Brasileira; Historiador; Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana; Mestre em História – Cultura, Religião e Sociedade. professormarcosmanoelhist@gmail.com