Cerrado destruído: as mudanças climáticas irreversíveis começam aqui

Relatório do IPCC sobre o clima aponta más notícias para o mundo todo, mas consequências para o Brasil, Goiás e suas economias são ainda piores

A água caía sem parar, mas também sem machucar. Mansa, serena. A chuva chovia e, apenas monótona, chateava o dia. Eu era apenas um adolescente esperando por tempo bom naquele novembro de 1989. Havia começado a chover em algum momento no começo daquele mês – a lembrança não chega mais a muita exatidão sobre a data. Desde então, ela, a chuva, era parceira. Uma parceira chata.

Tinha meus motivos para estar triste pelo tempo invariavelmente úmido. Os dias chuvosos quase sempre adiavam, ou mesmo impediam, os ensaios que teríamos no clube dos servidores da Universidade Federal de Goiás, a Asufego, que depois se chamaria Sint-UFG e, finalmente e até não sei que data, Sint-Ifesgo. Eram os preparativos para o festival de música da minha escola, o Colégio de Aplicação da UFG, o Cajuína – além de bebida tradicional piauiense e nome da clássica música de Caetano Veloso, também a sigla para “Canções Juvenis Interpretadas no Aplicação”.

Interpretar Raul Seixas nesses festivais era “de lei” naquela época. Principalmente naquele ano, em que o Maluco Beleza havia morrido em 21 de agosto. No violão, onde eu arranhava os primeiros acordes, muitas das canções emblemáticas do roqueiro, como Medo da Chuva e Metamorfose Ambulante. Outra, que um amigo tocava, era As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, uma coleção de pensamentos curtos que Raulzito enfileirava ritmando um repente nordestino. Entre os diversos versos, esta estrofe:

Buliram muito com o planeta
O planeta como um cachorro eu vejo
Se ele não guenta mais as pulgas
Se livra delas num saculejo.

Palavras visionárias, na semana em que o mundo recebe, da ciência, notícias não muito boas sobre seu futuro. O disco em que a música se inseria é Gita, de 1974, ano em que as preocupações ambientais se misturavam às econômicas pela primeira vez, com a crise do petróleo. Os membros da Organização dos Países Árabes Exportadores de Petróleo (Opep) resolveram promover um embargo a boa parte do mundo ocidental por conta do apoio dos Estados Unidos a Israel na Guerra do Yom-Kippur, também conhecida como Guerra Árabe-Israelense. O preço do barril do petróleo quadriplicou, passando de 3 para 12 dólares.

Base petrolífera na Arábia Saudita: combustíveis fósseis são o alvo a ser combatido para conter uma deterioração ainda mais ampla das condições de vida na Terra | Foto: Reprodução

Quando Raul lançou a música, havia também dois anos da realização da primeira cúpula mundial sobre questões ambientais, a Conferência de Estocolmo, em 1972. Em meio a muita discussão sobre como conter o aumento da devastação dos biomas e da poluição nos grandes centros urbanos, surgia ali uma divergência que, meio século depois, infelizmente ainda está longe de ser resolvida: a batalha entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, com um lado acusando o outro da responsabilidade pela degradação. Em meio a isso, a mais gigante das nações, em termos populacionais, A China até topam reduzir emissões de gases, mas daqui a um tempo.

Só que tempo não existe mais. O que era “para ontem” não foi feito. A prova é o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apresentado na segunda-feira, 9 – o sexto documento produzido pelo órgão em 32 anos – trouxe a palavra “irreversível” como principal destaque. Os cientistas já admitem que não há como evitar consequências graves da ação humana recaiam sobre as civilizações de todo o mundo. Foram-se os anéis e, agora, o que se quer evitar é que os dedos da humanidade acabem com o restante das joias.

O preciso documento do IPCC distribui os relatos preocupantes em cinco qualificadores de confiança: muito baixabaixamédiaalta e muito alta. Mostra que o planeta aqueceu 1,09 grau desde o início da chamada Revolução Industrial. A grande novidade é que os estudos conseguiram separar o que foi causado por aquecimento natural – ou seja, independente da ação do homem – e o quanto a temperatura subiu por atividades humanas, como a emissão de gases poluentes com a queima de combustíveis fósseis. Os números derrubam qualquer tentativa de repassar ao próprio meio ambiente a “culpa” pela elevação do calor, principal fator responsável pelos eventos extremos: do 1,09 grau, apenas 0,02 ficam na conta da natureza.

Se a coisa está grave, imagine como poderá ficar até a metade do século, quando a temperatura média poderá ter subido em 1,5 grau desde a era pré-industrial. A previsão do IPCC é tida como de “confiança muito alta”, ou seja, praticamente não há chance de que não ocorra assim. Onda de calor cozinha mariscos, mexilhões e outros moluscos vivos em praia  do Canadá | Mundo | G1

Mariscos, mexilhões e outros moluscos são cozinhados vivos em praia do Canadá, durante recente onda de calor extremo | Foto: Reprodução

Mas o problema não está mais no futuro. “O que virá” já está aí e rende manchetes praticamente toda semana. Neste momento, em vários lugares do mundo, acontecem fenômenos extremos, alguns deles bastante agudos e visíveis. Exemplo? Enquanto escrevo, neste sábado, 14, o Haiti começa a contar os prejuízos de mais um terremoto devastador, com centenas de mortes. Um terremoto, por si só, não pode ser ligado à questão das mudanças climáticas, mas a elevação do nível dos oceanos, sim – por conta, especificamente, do derretimento das geleiras no Ártico, na Antártica e nos demais continentes. As ilhas e áreas litorâneas ficam, dessa forma, mais vulneráveis a ocorrência de tsunamis e outros fenômenos.

O Haiti é um dos dez países mais ameaçados pelas mudanças climáticas, as quais afetarão, com maior gravidade em todo o mundo, a região do Sul da Ásia. Mas, como a Terra é um globo, o que ocorre do outro lado do planeta afeta a vida por aqui, e vice-versa.

E o Brasil?
Se para o planeta inteiro a questão é muito séria, para o Brasil, especificamente, a questão é mais grave ainda, segundo explica a professora Mercedes Bustamante, do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB). Em entrevista ao canal Globonews, ela confirmou, como se pode deduzir do relatório, que o Brasil será um dos lugares mais afetados por conta das mudanças climáticas. Isso se deverá principalmente por dois fatores: pelo fato de o País ter a maior parte de sua população na linha costeira e pela dependência do agronegócio para a sustentação de sua economia.

Com a ocorrência de mais fenômenos extremos, o litoral fica mais exposto. E a elevação do nível do mar também pode causar o desaparecimento de praias inteiras e a inundação de áreas habitáveis. Para o interior do continente, o agro como motor da economia vai sofrer com a irregularidade dos ciclos de chuva, com mais geadas e secas cada vez mais prolongadas.

Em meio a isso, outro fator que pode tornar mais grave a questão no Brasil é o alto nível de desigualdade social. “As mudanças climáticas vão afetar, como em todo o restante do mundo, aqueles que já estão marginalizados”, diz a professora Mercedes. O desafio por aqui é maior justamente pelo fato de o País ser um dos que detém um dos maiores índices de desigualdade social no planeta.

Cerrado e as consequências para Goiás e o Centro-Oeste

Diante de todo esse cenário, o Cerrado é um bioma que merece um capítulo à parte. Desde a década de 60, com a vinda da capital federal para Brasília e a “expansão para o Oeste” promovida pelos governos militares. Até a década de 60, quem passasse pelas (raras) rodovias goianas praticamente observava uma paisagem homogênea com os diversos subtipos de vegetação, cortada apenas pelos núcleos urbanos.

Desde então, muita coisa mudou. A agricultura virou negócio de exportação e a pecuária abriu fronteiras imensas no meio do bioma. O resultado é que mais da metade do Cerrado não existe mais. A descontinuidade de suas faixas ainda existentes, dificultando corredores de sobrevida para as diversas espécies, torna o bioma, na prática, virtualmente extinto, como já declarou o professor Altair Sales Barbosa, ainda em 2014, ao Jornal Opção.

Professor Altair Sales Barbosa: na luta pelo Cerrado, a cuja destruição alerta há décadas| Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

As gramíneas originais do Cerrado já estão praticamente em estado irreversível de extinção. Com a difusão do capim braquiária e outros para pastagem, as sementes exógenas se espalharam pelo solo e “dominaram” o terreno. Hoje, o “capim” do Cerrado praticamente só é encontrado dentro das grandes reservas ambientas, como os parques nacionais das Emas e da Chapada dos Veadeiros

Projeto absurdo
E é justamente a proteção da Chapada dos Veadeiros que está na berlinda de um projeto de lei assinado pelo deputado Delegado Waldir (PSL-GO). Ele quer reduzir o parque nacional de 240 mil para 65 mil hectares. O aumento da área foi feito pelo Decreto 14.471 de 5 de junho de 2017, do então presidente Michel Temer (MDB). A justificativa de Waldir para o projeto  é de que a ampliação do parque prejudicou os agricultores da região.

A coincidência da divulgação da proposta na semana em que os cientistas do mundo todo alertam para as consequências da destruição já promovida só escancara o absurdo da situação. E nada garante que o projeto seja simplesmente arquivado, pelo contrário: em uma conjuntura na qual o ministro do Meio Ambiente é também seu principal inimigo, uma pauta como essa não tem por que não agradar ao governo, que, em tese, poderia aprová-lo, tendo os deputados do Centrão como avalistas.

A projeção mais branda para o Cerrado prevê intensificação das estiagens. Só isso já deveria ser mais do que motivo para que os maiores interessados – os Estados da região e os produtores rurais – encampassem desde já uma força-tarefa para minimizar suas próprias perdas. Para isso, seria preciso investir mais e, talvez, ter de ganhar menos durante um período. A questão que pesa é o imediatismo que sempre atravancou o processo de luta contra a destruição ambiental: pra que esperar para ganhar dinheiro depois se se pode lucrar agora?

Voltando ao início do texto, nunca mais vi aquela chuva perene durar um novembro inteiro. Ainda chove em novembro, mas menos. As mudanças climáticas não são de um dia para o outro. Mas a velocidade com que elas estão se dando assusta.

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segunda-feira, 12 maio 2025

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